terça-feira, 25 de outubro de 2011

Snoopy no Planeta dos Homens

Planeta dos Homens, vulgo "Mundinho".

Não, não é o Snoopy do genial Charles Schultz. Quem me dera eu pudesse estar falando aqui daquele cãozinho querido, esperto, que sonhava em ser o ás da aviação. Vou contar a história menos afortunada de um outro Snoopy, que nem Beagle era. Era um mix de Dachshund com alguma outra coisa que bem podia ser um Beagle, mas seus "donos" insistiam em dizer que ele era um Pincher.

Soube da existência dele numa conversa com outros conhecidos do trabalho. Contaram que ele tinha sido atropelado e que não mexia mais as patas traseiras. Contaram que queriam dá-lo para alguém que pudesse tomar conta dele... que ele estava dando muito trabalho. Logo já tive todas as indicações do tipo de "dono" com que eu estava lidando, mas acreditei que poderia consertar as coisas. Contei a história da Cacau, de como ela hoje em dia consegue andar até sozinha, depois de um acidente parecido, para mostrar pra pessoa que o bichinho tinha recuperação - mesmo que ele não andasse por conta própria, poderia sim se locomover por meio de uma cadeira de rodas feita sob medida pra ele e assim voltar a ser independente, na medida do possível, dando menos "trabalho" e preocupação.

Aparentemente a pessoa se convenceu e montamos um esquema para eu levá-lo ao hospital veterinário da UnB. A "dona" de Snoopy morava numa cidade muito humilde, longe do trabalho, mas no dia seguinte ela o trouxe na caixinha de transporte de meus gatos, que eu havia emprestado. Numa operação de guerra, saí com ele do trabalho direto pro hospital veterinário, que infelizmente estava fechado pra reforma - no meio do semestre letivo (comentários -- revoltados -- em futuro momento oportuno). Tive de deixá-lo em meu apartamento, para pânico dos meus gatos. Combinei com sua "dona" que a buscaria na saída do trabalho, levaria-a a minha casa e a deixaria na rodoviária para que ela pudesse levar Snoopy de volta pra casa para que voltasse na data da consulta que eu havia agendado em outro hospital veterinário.

Na hora combinada para sairmos, a pessoa já tinha ido embora mais cedo. Eu liguei pra ela; da primeira vez, ela atendeu e desligou logo depois que eu me identifiquei. Depois não atendeu mais. Snoopy passou a noite na minha casa, chorando. Eu fiz o possível para dar-lhe o maior conforto, para levá-lo de volta no dia seguinte para sua "dona". O pobre bichinho não parou de chorar a noite inteira. Meu coração estava partido e eu chorava muito, junto com ele. Tentava acalmá-lo e fiz muitas orações pela sua recuperação e bem-estar. Não conseguia acreditar que ele estava ali, abandonado, tão só, sem compreender por que estava ali, naquele lugar que não era o dele... quanto medo ele deve ter sentido. Claro, senão não estaria chorando, uivando dolorido e saudoso. Não era a privação de sono que me doía, eu já nem sabia mais que horas eram, mas me doía no fundo do coração aquela solidão que ele sentia. E me doía minha limitação em ajudá-lo. Se eu tivesse condições, eu ficava com ele. Enquanto estive com ele em casa, ele se arrastou atrás de mim, me seguindo. Pobre bichinho, somente queria alguém para protegê-lo...

No dia seguinte, a tal pessoa se assustou ao me ver indo procurá-la, com cara de poucos amigos e de uma noite inteira mal dormida. E chorei muito diante dela pelo fato dela o ter abandonado comigo e não ter retornado minhas ligações, nem me dado explicações, nem me procurado antes de sair, sendo que eu a levaria até em casa se fosse necessário. Eu descarreguei tudo em cima dela. Ela veio me dizendo que deus me abençoasse... e eu não gosto quando colocam deus no meio para se esquivarem de suas obrigações. Disse que deus já tinha me abençoado me dando um olhar compassivo e forças para cuidar dos animais vítimas de maus tratos, mesmo que eu faça pouco em comparação com outras pessoas que entregam suas vidas a essa missão e estão nela há muito mais tempo do que eu. Ela me pediu que a perdoasse, eu disse que a perdoava, mas que ela deveria examinar seus atos e tentar se perdoar e se emendar. Que eu tinha prometido tudo pra ajudar, até a cadeirinha de rodas pra ele, mas ela o tinha abandonado comigo, e ainda assim dizia que ele era de estimação?!

Uma das piores coisas da história foi saber que o bichinho estava assim há pelo menos dois meses. Não, vocês não leram errado, são dois meses mesmo, não são dois dias. Mas acho que o choque final, que me deixou baqueada, que terminou de arrasar comigo, foi quando fui levá-la de carro, com o Snoopy, até sua casa, na hora do almoço. Depois de quase uma hora chegamos lá. A rua era humilde, mas as casas da vizinhança, inclusive a dela, eram amplas, de alvenaria, decentes. Sem muitos acabamentos, mas era uma casa grande -- e ali estava um carro zero, de uma nova coleção de uma marca tradicional, o próprio lançamento do ano, em que se lia um grande adesivo: "Esta é a resposta da promessa de Deus".

Vou parar aqui pra fazer um comentário à parte. Não estou fazendo crítica a religião nenhuma. Mas dado o contexto, um ser vivo, que antes era "estimado", assim que "quebrou", passou a dar trabalho, a ser um inconveniente, algo do qual se livrar sem nem procurar socorro a tempo. Em qual dos dois estava o maior valor para aquela mulher? Não na vida, mas no bem material. Se ela acredita que deus possa premiar as pessoas dessa forma, dando-lhes presentes materiais, é bom pra ela, eu não vou discutir. Não tem nada de mais ela trabalhar e se esforçar para ter um carro, mas eu me espantei ao ver o que ela faz para pagar a prestação de um carro daquele e o que ela não fez em momento algum para minorar a dor de um ser vivo, que continuava se arrastando pelo chão mal acabado da casa e se ralando todo, ficando em carne viva... os rastros de sangue que ele deixava na mesma garagem onde seu carro novinho brilhava. Desculpem, mas esse contraste foi muito chocante pra mim.

Mas isto é um dado de uma cultura capitalista ao extremo. O que valorizamos mais são os bens materiais e fazemos tudo para por um preço em tudo. O Snoopy, para ela, passou a ter menos valor quando ficou aleijado, e ela quis se desfazer dele largando-o comigo. Fazemos isso com nossa própria espécie, que dirá com as outras? Largamos nossos filhos com babás porque dão muito trabalho; largamos nossos pais e familiares idosos em lares e asilos porque dão muito trabalho...

Snoopy voltou para aquela casa e para aquela "dona". Eu ainda dei o contato de outras pessoas que poderiam ajudá-la. Entreguei o caso, não tive estrutura emocional pra continuar lidando com isso. Snoopy que me perdoe um dia. Espero que ela tenha entrado em contato com elas. Quis tanto saber como ele ficou, mas não tinha coragem para perguntar, eu me tremia só de vê-la. Talvez outras pessoas tivessem agido melhor do que eu. Eu fiquei muito movida, doída com esta história, eu estive do lado de uma pessoa que me tratou dessa forma, por meio de seu próprio animal doente. Acho que tinha atingido um limite meu, não sabia mais como lidar com a situação. Quis denunciar, mas tive medo do ambiente do trabalho. A pessoa não me olhava mais nem falava comigo. Eu ainda tenho um tremor frio e um nó no estômago sempre que a vejo passando pelos corredores. Felizmente ela está alocada em outro lugar de modo que não nos encontramos mais tantas vezes. Pensar que ela o deixara agonizando por dois meses antes de me encontrar e que tenha tratado tudo como uma forma de se livrar dele usando de minha boa-vontade (não que eu seja uma santa, somente coincidiu de eu ser a pessoa que tentou ajudá-la no momento)... é algo que não consigo compreender...

Só resta ao Snoopy sonhar que corre veloz com sua cadeirinha de rodas... o ás das rodinhas nas pistas, em seus sonhos...