quarta-feira, 28 de novembro de 2012

As Sombras



Quando descobrem que eu sou do movimento de proteção aos animais, as reações são variadas. Embora eu entenda que não faço nada de extraordinário, que é parte da minha vivência de cidadania, e que por isso qualquer pessoa pode fazê-lo, ainda assim, acabo me encontrando em situações, digamos, até desconfortáveis. Há casos de humilhação, de preconceito. Desta vez, eu fui o bobinho, como naquela antiga brincadeira da bola.

Um vigilante no meu trabalho, que sempre conversa comigo sobre animais vitimados, desta vez provocou uma situação muito constrangedora. Ele me disse que um brigadista havia ateado fogo a um rato.

Muitas pessoas teriam se rido, ou desconsiderado o caso pelo fato de ser "apenas" um rato. Algumas pessoas até poderiam ter notado se tratar de uma armadilha, uma dessas brincadeiras sem graça que servem apenas para torrarem tempo e paciência das pessoas.

Eu não. Eu achei grave o fato de ser um brigadista a atear fogo num animal, fazê-lo morrer por um flagelo terrível. Eu pensei na dor de um ser vivo se desmanchando no fogo. Pensei na contradição de uma pessoa responsável por garantir a segurança e zelar até pela vida das pessoas no ambiente de trabalho estar envolvido neste falso dilema da nossa sociedade contemporânea, em que existem vidas menores e menos importantes que outras. Por exemplo, é por conta deste falso dilema que as pessoas de renda mais baixa sofrem com serviços públicos muito ruins, pois são desconsideradas por serem menores, sem importância.

Então, eu fui tirar satisfações. A comédia começa para uns aqui. Eu fui à sala dos brigadistas perguntar pelo rapaz. Contaram que era impossível que isso tivesse acontecido porque o tal brigadista era evangélico. Eu respondi que religião nenhuma impede ninguém de fazer nada de errado; que tem um monte de evangélico, assim como exemplares de qualquer religião, envolvidos em corrupção, pedofilia, e vários outros crimes. O rapaz chega na sala e me vê, e dá a entender que sabe o que está se passando, todos se riem. Eu perguntei, "que história é essa de você ter queimado um animal vivo? Você, um brigadista? Que salva vidas?" O constrangimento é notório, mas os risos continuam. Ele tenta inverter a situação, me pergunta quem me contou isso, arruma o peito, se apruma na minha frente, eu não arredo pé. Inclusive, me sento para conversar com ele, dizendo que eu não sairia dali enquanto não resolvêssemos essa situação. Ele me respondeu dando volta, citando uma passagem da Bíblia, em que se diz algo como quando se é criança, se faz coisas de criança e quando se é adulto, se deve abandonar as coisas de criança. E que a pessoa que havia me contado estava agindo como criança.

Eu respondi que Deus - já que ele acredita nele - criou todos os seres e em nenhum momento na Bíblia se diz para nos "divertirmos" cruelmente com os animais. Que somos os zeladores da Criação. E que devemos agir como tais.


Ele não respondeu a minha pergunta. Discutimos mais um pouco sobre isso e ele, por fim, perguntou se eu havia entendido o que ele havia dito.

Eu disse que ele não me havia respondido. Que ele havia citado uma passagem da Bíblia sobre agir de acordo com sua idade correta, com maturidade. Mas que atear fogo num animal, qualquer que seja ele, não é coisa de criança. É coisa de um monstro.

Ele contou ao vigilante e foi reclamar com o chefe dele, um passando a batata quente da brincadeira sem graça para a responsabilidade do outro. O chefe do vigilante o repreendeu e o vigilante veio acertar contas comigo, me perguntando por que eu havia ido falar com o brigadista, e que eu devia desfazer o que eu fiz. O que EU fiz? Os dois encetaram numa rixa e me envolveram na trama, eu fui cumprir minha obrigação cidadã e a culpa é minha?


Eu só fico pensando que sentido tem se divertirem com a minha cara quando a causa é tão grave...


sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Alice no País...

Uma amiga do trabalho chegou um dia dizendo que havia visto uma gatinha recém-parida debaixo da carcaça de um carro abandonado na quadra em que mora. Ela é tutora de uma cachorrinha idosa em casa, já quase completamente cega e surda, de quem cuida com muito carinho e atenção, e que provavelmente não suportaria lidar com a novidade de uma gata com uma ninhada inteira; uma gata que, por isso mesmo, já estaria com os nervos à flor da pele, protetora, atenta aos perigos, mais arisca do que nunca. Buscou ajuda.

Então começou sua descida aos infernos. (Não foi dito que o inferno são os outros? Talvez.)

Ela ficou assombrada por ninguém mais ter dado atenção ao fato, oferecido proteção à gata e seus filhotes. Uma quadra inteira, quase dez blocos, seis andares cada um, vários apartamentos por andar, muitas famílias e seus filhos. E ninguém.

Ela buscou com sua família, com amigos, que tentassem ajudá-la a acolher a gata e sua ninhada. (Eu disse que se ela conseguisse um lar temporário, seria possível conseguir descontos em clínicas veterinárias, tratamento, castração e o futuro encaminhamento à adoção). Não conseguiu. Incompreensão. Estranhamento. Sentimento de solidão. Espanto. O inesperado.

Ela entrou em contato com abrigos de animais. (Eles estão lotados, não teriam como abrigar mais esta família; eles mesmos precisam de ajuda). Não conseguiu. Raiva. Revolta. Sentimento de solidão.

Trouxe um pouco de ração dos meus gatos para ela colocar perto da gatinha, ela iria precisar, recém-parida, com dificuldade de buscar alimento. Ela colocou. E, no dia seguinte, haviam retirado as tigelas de comida que ela havia colocado. Choque. Dor. Choro.

A mãe gata foi embora.

Veio a chuva monstro da madrugada, a primeira de Brasília, depois da seca. Tão esperada pelos brasilienses e, por ela, tão temida – e os filhotes?

Dois já mortos, num canto. Um, muito fraco; outro poderia ter sido o mais forte, debatia-se. Buscava a mãe, o leite, o calor, a proteção. Onde? Apenas três ou quatro dias de nascido...

Ela desceu à rua à meia-noite; ela, e ninguém mais; o filhote mais fraco, já morto, afogado; retirou o último filhote ainda vivo, e o levou pra casa, e o embrulhou em uma toalhinha, e enfrentou o pai, e o velou à noite, e esperou que continuasse a viver.

Ao menos ele pôde morrer nas mãos da compaixão.

Ela chorou muito por três dias. Comprou um saco de ração para deixar no carro, para quando precisar ajudar algum bichinho. Ela nunca mais foi a mesma. Ela viu o mundo.


O silêncio dos inocentes

Foi um tempo de assombro e interiorização. Minha “fase ostrinha”, à qual meus amigos estão acostumados, pois vez ou outra ocorre. Viver dói bastante, maldita consciência.

Se eu já andava como que pisando cacos de vidro ao ver pedintes maltrapilhos à entrada das padarias; crianças vidradas em crack na Rodoviária do Plano Piloto à luz do meio-dia; pessoas apagadas por bebida dormindo nos bancos das paradas dos ônibus... ver um cão magrela, costelas aparentes, revirando um saco de lixo; ver um gato que teve os olhos perfurados, vagando pelas ruas, semi-morto; ver ninhadas recém-paridas numa caixa de papelão, abandonadas para morrerem de frio e fome... eu me calei diante do sofrimento de tudo que é vivo. É esmagador.

“We're all mad here!”, “Somos todos loucos aqui!”, dizia o Gato de Cheshire.

Eu quis gritar, eu quis falar e chorei, até. Mas fui buscar um jeito de me desapegar da minha própria dificuldade para trabalhar por quem não tem meio de falar por si, de lutar por si. Se a gente pensa muito na própria dor, é capaz de ficar louco. Pensar mais na gente que no outro nos faz perder o sentido de porquê estamos aqui, e por que as pessoas vivem do modo que vivem neste mundo. Não precisamos viver assim, não precisamos ser do jeito que somos, causando tanto sofrimento.

E não, eu não voltaria atrás; não abriria mão da minha consciência. Vamos em frente, com dor, lutar até o fim!