segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

A égua e os burros


Há algumas semanas, os cidadãos de Brasília ouviram chocados a notícia de que uma égua, que puxava a carroça de um catador de recicláveis, agonizou até à morte em plena via pública onde ela e seu condutor haviam sido atingidos por um carro (leia a íntegra da notícia: aqui).

A polícia militar chegou rapidamente ao local e requisitou que a DIVAL (Divisão de Vigilância Ambiental, conhecida aqui na cidade como Centro de Controle de Zoonoses) fosse recolher o animal, de forma que ele fosse devidamente avaliado e encaminhado a um abrigo até que seu destino fosse resolvido (se devolvida ao dono, e quando, ou encaminhada à proteção de algum abrigo para animais).

A égua esperou três horas pelo resgate, mas morreu. Ela ficou negligenciada por três horas, entre as horas mais quentes do dia (o acidente ocorrera por volta das 11h30 da manhã) no calor do asfalto. Pessoas passavam pelo lugar derramando água para que seu sofrimento fosse minorado, porém nem estes gestos de compaixão permitiram que ela sobrevivesse. A desculpa da DIVAL/Zoonoses era que a perícia tinha que ser concluída antes que o animal fosse retirado. Desculpe-me a vergonha alheia de ter de fazer vocês leitores passarem pela vergonha alheia de ler isso...

Puxando o fio da meada... O que ocorreu com este animal ocorre com seres humanos todos os dias em Brasília - não que o sofrimento de um ou de outro seja menor ou maior, mas o que causa o sofrimento de ambos é que é realmente doloroso de conhecer. Viver na cidade mais desigual do país, segundo foi recentemente divulgado pelo IBGE, traz exemplos diários do que é a selvageria de uma cidade cujos gestores se utilizam dos cargos políticos que ocupam para satisfazer interesses particulares. Não gerem a saúde pública, o transporte público, a educação pública - que não são difíceis de administrar. O suprimento de remédios, sua compra e distribuição, pode ser feita com planejamento das licitações e observando as estatísticas dos estudos populacionais. Não existem desculpas para não haver médicos nos centros de saúde, nas UPAs, nos hospitais. Não existem desculpas para não haver material de trabalho para eles, que, quando falta, muitos têm de se juntar aos enfermeiros e aos técnicos para fazer uma "vaquinha", juntar dinheiro e comprar nas farmácias próximas! Eles custeiam esparadrapos, gaze, do próprio bolso, para atender aos pacientes que precisam de curativos! Não existem desculpas para as escolas públicas do Distrito Federal estarem em péssimo estado de conservação. Alguns alunos contribuem com o quadro, depredando o patrimônio público? Mesmo assim não é desculpa para que a escola permaneça em ruína. Há ações que podem ser tomadas junto aos pais e responsáveis, a comunidade, para conscientizar a pequena parcela de maus alunos. Não existem desculpas para o centro cirúrgico do Hospital Veterinário da UnB ter ficado fechado, em 2011, sem poder atender aos casos operatórios, em plena vigência do semestre letivo, prejudicando não apenas aos animais mas também aos alunos que atrasaram esta matéria no semestre. A reforma poderia sim ter sido feita durante o período de férias (que dura de dezembro a março).

Não existem desculpas para que o serviço público não funcione. Desconfio que a égua tenha sido negligenciada por seu acidente ter coincidido com a hora do almoço dos funcionários da DIVAL/Zoonoses. O que me faz pensar assim? Bem, vejamos: quando eu mesma fui lá para adotar meus dois gatos, já na entrada, ao perguntar se havia gatos para adoção, os funcionários me disseram que não. Mas eu estranhei, porque havia visto uma matéria em um jornal local de que a Zoonoses estava cheia de animais à espera de adoção, caso contrário, seriam mortos. Ao ouvir isso, levaram-me ao gatil, advertindo-me de que havia apenas dois disponíveis Quando chego ao gatil, qual não foi minha surpresa ao constatar que havia quase 30 gatos disponiveis para adoção!

A mentalidade dos funcionários do lugar é: se todos os animais que aqui chegam forem adotados, não haverá serviço para nós, e seremos dispensados, perderemos nosso emprego. Esse infeliz pensamento não é somente culpa dos servidores da casa, mas do fato de a DIVAL/Zoonoses ser um órgão sucateado, negligenciado pela própria Secretaria da Saúde do GDF, a quem está subordinado. Não há concursos para renovar a força de trabalho, não há cursos de capacitação para os funcionários e, até o momento, pouquíssima vontade de abertura para estabelecer parcerias com as organizações de proteção animal.

É claro que não pretendo generalizar. Não são todos os funcionários do órgão que trabalham mal. É aí que entra aquele velho conflito entre os técnicos e os políticos, em que os técnicos têm uma melhor visão do funcionamento do órgão, mas este, sua estrutura, seu orçamento, nas mãos de inescrupulosos políticos (neste caso, assim agindo, são psicopatas e genocidas) servem apenas a interesses particulares de enriquecimento pessoal e manutenção do poder local. Os técnicos têm pouco poder de ação nestes casos.

A morte de uma égua retrata, portanto, como toda Brasília funciona. Ela, e milhares de cidadãos esperam que seus governantes atendam às suas demandas e necessidades; estas, porém, podem até ser ouvidas, mas são prontamente ignoradas. Um animal negligenciado, pessoas negligenciadas como animais, na cidade mais desigual do Brasil... é uma realidade que não não serve mais.

2 comentários:

Anônimo disse...

Tenho certeza que as associações de defesas dos animais ja' devem ter feito algo, mas sera' que as associações não podem fazer parcerias de sensibilização e de conscientização aos funcionarios da zoonoses? Talvez estes funcionarios tampouco estejam la' por que gostam ou como vocação e isto deve deteriorar ainda mais o serviço...

Juliana Silveira disse...

Sim, Anônimo do Bem, as ongs têm tentado, como podem, propor melhorias na gestão da DIVAL/Zoonoses de Brasília, mas temos tudo pouca receptividade, infelizmente. Sabemos que os funcionários não são capacitados, ou seja, sua capacidade de trabalho (e também sua sensibilidade humana)é totalmente negligenciada. Mas... água mole em pedra dura...