quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

O abandono de animais no período das férias


Este é um post informativo que escrevi e foi adaptado para o jornal eletrônico de onde eu trabalho. Compartilho aqui com vocês para colaborar com algumas ideias de cuidados com os bichinhos nas férias.

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Muitas famílias ainda não incluem seu animal de estimação no planejamento das férias e o abandonam à fome e aos maus tratos nas ruas. Antes o centro das atenções, bem alimentado e protegido, quando chega o dia da viagem, o portão se abre e ele é esquecido e entregue à própria sorte. Inventam-se mil histórias para consolar as crianças, dizendo que Totó encontrou sua verdadeira família, que está num lugar muito melhor, mas que acabam incutindo nelas a cultura de que o animal é um brinquedo, que não sente frio, fome e medo, e que nós não temos responsabilidade sobre sua vida e sua saúde. Esta ainda é uma triste realidade no Brasil mas que pode, felizmente, ser mudada pelo simples planejamento das férias.

Você não compra ração, não paga consulta ao veterinário, as vacinas e eventuais medicações? Então, pode ser sincero com a sua contabilidade e incluir o pet na conta das férias.

Ao planejar sua viagem, além dos gastos com hotéis, passagens, combustível, alimentação, lembre-se de seu animal de estimação e decida se irá ou não levá-lo. A partir daí, pesquise o cuidado mais adequado de acordo com sua espécie. Caso seja impossível levar seu pet, procure por hotéis ou pet sitters. Lembre-se que cachorros podem ficar em hotéis especializados para cães, pois têm uma natureza coletiva, mas gatos geralmente detestam sair de sua casa e adoecem muito facilmente com a falta do dono, que é sua principal referência afetiva. Para os felinos, já existem em Brasília muitos serviços de cat sitters, que são os pet sitters especializados em gatos. Além disso, um membro da família, um vizinho de confiança ou um amigo podem ajudar a supervisionar o animal, revezando-se nas visitas para não se sobrecarregarem com a responsabilidade. Para estes superamigos, não se esqueça de trazer uma lembrancinha de viagem muito especial!

Mas se você optar por levar seu bichinho para um passeio memorável, seja em Paris ou na praia, tenha muito cuidado com o transporte de animais em viagens. Existem casos de negligência de companhias aéreas em que as gaiolas com os animais são mal acondicionadas ou colocadas entre as malas e eles acabam fugindo ou mesmo morrendo de calor. Certifique-se de que a caixa de transporte é bem resistente e use cadeado extra para garantir que a portinhola não será aberta. E se for viajar com o animal de carro, é obrigatório o uso de cinto de segurança específico para o animal. Verifique se o hotel em que você ficará hospedado também aceita animais. E, em qualquer dessas situações, converse antes com o veterinário de seu bichinho: ele indicará sobre a necessidade ou não de calmantes para o trajeto, a dose correta para o peso e o tipo do animal, e sobre a hidratação e a alimentação do animal no percurso.

É possível ter ótimas férias sem incorrer no crime de abandono, descrito na Lei federal 9.605/98, e sem perder seu grande amigo!

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

As Sombras



Quando descobrem que eu sou do movimento de proteção aos animais, as reações são variadas. Embora eu entenda que não faço nada de extraordinário, que é parte da minha vivência de cidadania, e que por isso qualquer pessoa pode fazê-lo, ainda assim, acabo me encontrando em situações, digamos, até desconfortáveis. Há casos de humilhação, de preconceito. Desta vez, eu fui o bobinho, como naquela antiga brincadeira da bola.

Um vigilante no meu trabalho, que sempre conversa comigo sobre animais vitimados, desta vez provocou uma situação muito constrangedora. Ele me disse que um brigadista havia ateado fogo a um rato.

Muitas pessoas teriam se rido, ou desconsiderado o caso pelo fato de ser "apenas" um rato. Algumas pessoas até poderiam ter notado se tratar de uma armadilha, uma dessas brincadeiras sem graça que servem apenas para torrarem tempo e paciência das pessoas.

Eu não. Eu achei grave o fato de ser um brigadista a atear fogo num animal, fazê-lo morrer por um flagelo terrível. Eu pensei na dor de um ser vivo se desmanchando no fogo. Pensei na contradição de uma pessoa responsável por garantir a segurança e zelar até pela vida das pessoas no ambiente de trabalho estar envolvido neste falso dilema da nossa sociedade contemporânea, em que existem vidas menores e menos importantes que outras. Por exemplo, é por conta deste falso dilema que as pessoas de renda mais baixa sofrem com serviços públicos muito ruins, pois são desconsideradas por serem menores, sem importância.

Então, eu fui tirar satisfações. A comédia começa para uns aqui. Eu fui à sala dos brigadistas perguntar pelo rapaz. Contaram que era impossível que isso tivesse acontecido porque o tal brigadista era evangélico. Eu respondi que religião nenhuma impede ninguém de fazer nada de errado; que tem um monte de evangélico, assim como exemplares de qualquer religião, envolvidos em corrupção, pedofilia, e vários outros crimes. O rapaz chega na sala e me vê, e dá a entender que sabe o que está se passando, todos se riem. Eu perguntei, "que história é essa de você ter queimado um animal vivo? Você, um brigadista? Que salva vidas?" O constrangimento é notório, mas os risos continuam. Ele tenta inverter a situação, me pergunta quem me contou isso, arruma o peito, se apruma na minha frente, eu não arredo pé. Inclusive, me sento para conversar com ele, dizendo que eu não sairia dali enquanto não resolvêssemos essa situação. Ele me respondeu dando volta, citando uma passagem da Bíblia, em que se diz algo como quando se é criança, se faz coisas de criança e quando se é adulto, se deve abandonar as coisas de criança. E que a pessoa que havia me contado estava agindo como criança.

Eu respondi que Deus - já que ele acredita nele - criou todos os seres e em nenhum momento na Bíblia se diz para nos "divertirmos" cruelmente com os animais. Que somos os zeladores da Criação. E que devemos agir como tais.


Ele não respondeu a minha pergunta. Discutimos mais um pouco sobre isso e ele, por fim, perguntou se eu havia entendido o que ele havia dito.

Eu disse que ele não me havia respondido. Que ele havia citado uma passagem da Bíblia sobre agir de acordo com sua idade correta, com maturidade. Mas que atear fogo num animal, qualquer que seja ele, não é coisa de criança. É coisa de um monstro.

Ele contou ao vigilante e foi reclamar com o chefe dele, um passando a batata quente da brincadeira sem graça para a responsabilidade do outro. O chefe do vigilante o repreendeu e o vigilante veio acertar contas comigo, me perguntando por que eu havia ido falar com o brigadista, e que eu devia desfazer o que eu fiz. O que EU fiz? Os dois encetaram numa rixa e me envolveram na trama, eu fui cumprir minha obrigação cidadã e a culpa é minha?


Eu só fico pensando que sentido tem se divertirem com a minha cara quando a causa é tão grave...


sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Alice no País...

Uma amiga do trabalho chegou um dia dizendo que havia visto uma gatinha recém-parida debaixo da carcaça de um carro abandonado na quadra em que mora. Ela é tutora de uma cachorrinha idosa em casa, já quase completamente cega e surda, de quem cuida com muito carinho e atenção, e que provavelmente não suportaria lidar com a novidade de uma gata com uma ninhada inteira; uma gata que, por isso mesmo, já estaria com os nervos à flor da pele, protetora, atenta aos perigos, mais arisca do que nunca. Buscou ajuda.

Então começou sua descida aos infernos. (Não foi dito que o inferno são os outros? Talvez.)

Ela ficou assombrada por ninguém mais ter dado atenção ao fato, oferecido proteção à gata e seus filhotes. Uma quadra inteira, quase dez blocos, seis andares cada um, vários apartamentos por andar, muitas famílias e seus filhos. E ninguém.

Ela buscou com sua família, com amigos, que tentassem ajudá-la a acolher a gata e sua ninhada. (Eu disse que se ela conseguisse um lar temporário, seria possível conseguir descontos em clínicas veterinárias, tratamento, castração e o futuro encaminhamento à adoção). Não conseguiu. Incompreensão. Estranhamento. Sentimento de solidão. Espanto. O inesperado.

Ela entrou em contato com abrigos de animais. (Eles estão lotados, não teriam como abrigar mais esta família; eles mesmos precisam de ajuda). Não conseguiu. Raiva. Revolta. Sentimento de solidão.

Trouxe um pouco de ração dos meus gatos para ela colocar perto da gatinha, ela iria precisar, recém-parida, com dificuldade de buscar alimento. Ela colocou. E, no dia seguinte, haviam retirado as tigelas de comida que ela havia colocado. Choque. Dor. Choro.

A mãe gata foi embora.

Veio a chuva monstro da madrugada, a primeira de Brasília, depois da seca. Tão esperada pelos brasilienses e, por ela, tão temida – e os filhotes?

Dois já mortos, num canto. Um, muito fraco; outro poderia ter sido o mais forte, debatia-se. Buscava a mãe, o leite, o calor, a proteção. Onde? Apenas três ou quatro dias de nascido...

Ela desceu à rua à meia-noite; ela, e ninguém mais; o filhote mais fraco, já morto, afogado; retirou o último filhote ainda vivo, e o levou pra casa, e o embrulhou em uma toalhinha, e enfrentou o pai, e o velou à noite, e esperou que continuasse a viver.

Ao menos ele pôde morrer nas mãos da compaixão.

Ela chorou muito por três dias. Comprou um saco de ração para deixar no carro, para quando precisar ajudar algum bichinho. Ela nunca mais foi a mesma. Ela viu o mundo.


O silêncio dos inocentes

Foi um tempo de assombro e interiorização. Minha “fase ostrinha”, à qual meus amigos estão acostumados, pois vez ou outra ocorre. Viver dói bastante, maldita consciência.

Se eu já andava como que pisando cacos de vidro ao ver pedintes maltrapilhos à entrada das padarias; crianças vidradas em crack na Rodoviária do Plano Piloto à luz do meio-dia; pessoas apagadas por bebida dormindo nos bancos das paradas dos ônibus... ver um cão magrela, costelas aparentes, revirando um saco de lixo; ver um gato que teve os olhos perfurados, vagando pelas ruas, semi-morto; ver ninhadas recém-paridas numa caixa de papelão, abandonadas para morrerem de frio e fome... eu me calei diante do sofrimento de tudo que é vivo. É esmagador.

“We're all mad here!”, “Somos todos loucos aqui!”, dizia o Gato de Cheshire.

Eu quis gritar, eu quis falar e chorei, até. Mas fui buscar um jeito de me desapegar da minha própria dificuldade para trabalhar por quem não tem meio de falar por si, de lutar por si. Se a gente pensa muito na própria dor, é capaz de ficar louco. Pensar mais na gente que no outro nos faz perder o sentido de porquê estamos aqui, e por que as pessoas vivem do modo que vivem neste mundo. Não precisamos viver assim, não precisamos ser do jeito que somos, causando tanto sofrimento.

E não, eu não voltaria atrás; não abriria mão da minha consciência. Vamos em frente, com dor, lutar até o fim!

quarta-feira, 16 de maio de 2012

A Lei de Acesso à Informação e o CCZ de Brasília

Entra em vigor hoje, dia 16 de maio de 2012, a Lei 12.527/2011, chamada de Lei de Acesso à Informação. Ela possivelmente criará um impacto positivo, penso eu, na cultura do serviço público brasileiro, ao permitir o empodeiramento dos cidadãos brasileiros por meio do conhecimento e da aproximação com a administração pública.

Quem já precisou buscar informação junto ao serviço público certamente sentiu a vertigem do labirinto kafkaniano. Se você lida com algo ainda mais obscuro, como a defesa dos animais, pior ainda.

O que tudo isso tem a ver com o Centro de Controle de Zoonoses de Brasília? Tudo. O CCZ de Brasília (DIVAL - Divisão de Vigilância Ambiental, como é seu nome oficial) é um dos órgãos mais negligenciados do Governo do Distrito Federal, em vários aspectos. É um lugar sombrio, assustador e desumano, e não é só pelo que faz aos animais, mas aos funcionários também. Suas instalações precisam não somente de reforma, mas de uma reformulação completa, que abarque uma maneira humanitária de lidar com os animais. O gatil é um pequeno corredor estreito, em que as baias térreas dificultam o manejo dos animais, entre outros problemas; o canil é frio demais por ser, na verdade, um galpão; os servidores que lá trabalham, pelo menos o corpo de apoio administrativo, certamente não passa por um curso de atualização ou capacitação há décadas, o que permitiu que uma cultura danosa aos animais criasse raízes profundas. O corpo técnico, de profissionais veterinários... ninguém sabe ao certo quantos são, quem são. Dificilmente alguém consegue falar com eles. As ongs dificilmente conseguem alguma abertura para propor atividades em parceria.

Eu adotei meus dois primeiros gatos de lá e mais de um ano depois não consegui voltar ao local. Aquilo não é fruto de civilização. Aquilo é um campo de concentração. Claro que não faz bem aos animais, mas pros humanos também não. Conviver naquele lugar, diariamente, faz coisas com a sua cabeça. Coisas ruins.

Na verdade, ninguém sabe ao certo o que se passa no CCZ de Brasília. Na página da Secretaria da Saúde, ao qual está subordinado, não há nenhuma informação sobre ele: seu regimento interno, por exemplo, que deveria mostrar suas atribuições; seu organograma. Aliás, a Lei 2.095/1988, que estabelece as diretrizes para a proteção animal e o controle de zoonoses no DF está no site da ong Proanima, e não da Secretaria da Saúde. Não tem uma estatística. Uma prestação de contas. Noticia sobre sua atuação, qualquer atuação - não tem. É como se ele não existisse. A população de Brasília nem sabe onde ele fica.

Esta negligência mostra o quanto o assunto é desimportante para o GDF. Nas entrevistas os jornalistas sempre me perguntam sobre quantos animais são recebidos semanalmente, ou mesmo doados por eles; se há o sacrifício de animais, como é feito, quantos animais são sacrificados e com que frequência isso acontece; se eles têm alguma aproximação estatística sobre a população da fauna urbana, sobre suas doenças e as zoonoses que possivelmente carregam; quantos animais eles alcançam com as vaciações antirrábicas públicas; se fazem ou não castrações gratuitas; se atuam na conscientização da sociedade. Não dá pra responder, o CCZ de Brasília não informa nada.

O que será que ele esconde?

Eu peço às ongs e aos cidadãos que preencham o formulário na página do GDF e solicitem estas informações. Se massificarmos os pedidos, eles terão de responder, em algum momento. E nós vamos exigir as respostas.

As coisas precisam mudar naquele lugar.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

O grito de guerra da mãe primata

Ontem (13 de maio), no programa Fantástico, da Rede Globo, foi veiculada uma matéria sobre um livro há pouco tempo lançado no Brasil chamado O grito de guerra da mãe tigre. Amy Chua, a autora, é uma chinesa que proclama que a criação de um filho deve ser respaldada na máxima disciplina para que ele seja bem sucedido em sua futura carreira. Foram convidadas três atrizes prata-da-casa da emissora que deram suas (muito diferentes) opiniões sobre a questão. Até aí, tudo bem.

Mães normalmente se preocupam, cada uma à sua maneira, que seus filhos tenham um lugar ao sol na sociedade, e tentam proporcionar uma educação que desenvolva as várias habilidades deles para que eles possam cuidar de si. Bem, quase todas. E nem todas são bem sucedidas nisso. Algumas são enganadas pelos próprios mitos do que é ser mãe e tropeçam na função. Algumas se deparam com seus limites e os negam ou criam pobres justificativas, outras os reconhecem e tentam vencê-los. Mas, tentativas de ser verdadeiras mães à parte, eu não ouvi nenhuma delas criticar a sociedade que permite que uma mulher como Amy Chua escreva um livro como este e seja aclamada como uma verdadeira mãe, e ainda sirva de exemplo para as outras.

Vejam bem, não estou falando do sentimento de amar e querer o melhor para um filho, nem do melhor método para criar uma criança bem sucedida, mas acho que esqueceram de falar que mundo é esse para o qual estamos criando estas crianças. É este o mundo que realmente queremos para nossas crianças? Ou ainda: queremos que nossos filhos se tornem estas pessoas no futuro? E colaborem para que ele fique ainda pior do que é?

Uma mãe chinesa, no trecho do documentário mostrado na reportagem, diz que não deixa o filho descansar nem quando ele chora de cansaço (e ele não chora de cansaço por birra depois de cinco minutos se concentrando numa tarefa, mas sim depois de horas e horas de intenso treinamento em várias áreas, de piano a matemática, sem pausa para descanso, nem para ouvir seus próprios pensamentos). Quantos de nós, hoje, muitas vezes não choramos ou quase chegamos às lágrimas de tanto cansaço, tanta exigência no trabalho, tanta demanda por sempre melhor desempenho para o enriquecimento alheio? Quantos de nós não reclama que não temos tempo para nos divertirmos, de ficarmos com nossas famílias, de simplesmente cultivar um hobby ou ainda se dedicar a um trabalho voluntário? E é isso que estamos passando para nossos filhos? Queremos esta tristeza para eles também? E isso é amor de mãe??

Esta é a sociedade que sobrevive, e que não vive. Amy Chua ensina seu filho a ser um sobrevivente de um mundo miserável, em vez de ensiná-lo a desconstruir este mundo e revolucioná-lo.

Um livro como este só vem tendo este sucesso porque estamos à beira do abismo humanitário, e não porque estamos nos tornando melhores. Estamos criando pessoas cada vez mais competitivas e menos colaborativas. Competitivas para pensarem apenas no enriquecimento próprio, e não na solução da fome na África, no genocídio indígena das Américas, em tantas outras mazelas que nem vai dar para mencionar aqui. 

Entendam, não estou sendo xenófoba. Tenho certeza de que a cultura chinesa pode proporcionar muitas valiosas lições para as outras culturas do mundo. Mas alguém suspeita do por quê de exatamente as lições deste livro em particular estarem sendo mais valorizadas e até propagadas e imitadas do que outras como compaixão, colaboração, solidariedade?

Na natureza, a mãe tigre não tem outra opção. Ela precisa ensinar tudo o que sabe a seus filhos antes que ela seja morta, ou eles morram. Ela e seus filhos têm uma função no equilíbrio do meio ambiente, na cadeia alimentar. No nosso mundo, nós temos a opção de fazer diferente: a vida de nossas crianças não precisa ser mais valiosa do que a das outras crianças. Não precisamos ensinar nossos filhos a caçar os filhotes das outras mães -- para não precisarmos viver com o medo de que nossos filhos sejam as presas de outras criaturas. Não precisamos ensinar nossos filhos a explorar o trabalho alheio antes que explorem o dele; que eles sejam ricos às custas da miséria alheia, homens e animais; que aceitem as agressões do mundo como normais sem ensiná-los a ter a coragem para mudar este mundo.

Não somos mães tigre, somos mães primatas. Primatas símeos homo sapiens sapiens. Não vivemos na selva, mesmo que por vezes alguns exemplares infelizes de nossa espécie a transformem na tal selva de pedra.

Que filhos vocês vão deixar para o mundo?

Ser mãe é cuidar



A maternidade é um sentimento que ultrapassa o fato de uma mulher ter um filho biológico. Ainda bem. Senão, não haveria tantas mulheres adotantes, tantas madrastas legais (as "boadrastas"), tantas mulheres que se dispõem a cuidar dos filhos de suas amigas, tantas tias que têm um amor incondicional e um cuidado dedicado aos seus sobrinhos... e tantas mulheres dedicadas a cuidar, seja do que for: cuidar de crianças abandonadas, velhinhos em asilos, doentes em hospitais, e animais abandonados.

Parece que a palavra pra definir este sentimento maternal é maternagem, a capacidade de se sentir e agir como mãe, mesmo não sendo uma mãe biológica. Felizmente, eu tive a experiência de ter tido uma enteada e enfrentar todos os dilemas (ou pelo menos, uma boa parte deles) que uma mãe enfrenta - embora com limites de ação e contra todos os estigmas sociais de ser uma "madrasta". Minha antiga enteada tinha uma mãe presente em sua vida à sua maneira, e ambas construíam e continuam construindo sua relação, e somente elas sabem a dor e a delícia de serem quem são uma para a outra. Bem assim, como todas nós, com nossas mães, enfim. Não vamos nos idealizar, nem às nossas mães, não é?

E tem as outras mães da natureza. Eu tive a oportunidade de ver uma gatinha que recolhi da rua, sem saber que ela estava prenha, ter sua cria na minha casa. Eu vi como ela mudou seu comportamento com a cria recém nascida, como ela falava numa linguagem completamente diferente (não era um miado, era mais um arrulhar), como ela lutava para dar conta das quatro bebês quando elas começaram a andar e a sair do ninho, encantadas com as descobertas; como ela as ensinou a desmamar - e quando ela não tinha paciência de lutar contra a carência de uma das filhas em particular, que insistia em continuar mamando mesmo quando já não havia mais leite e a filha já se tornara maior que a mãe... quando ela tinha que ralhar com elas e como ela às vezes corria para um cantinho, para ter aquele momento que toda mulher com filhos deseja ter (mesmo se sentindo culpada por este desejo!), nem que seja por alguns segundos: aqueles cinco minutinhos num cantinho isolado quando a birra fica audível até na China!...

Esta experiência me proporcionou, por contraste, a pensar nas mães animais humanas, mesmo nas que não têm filhos biológicos, como eu. É certo que os mamíferos têm uma relação com suas crias muito diferente das demais espécies, mas eu me surpreendo de reconhecer comportamentos iguaizinhos, tanto nas mães humanas quanto nas não humanas. Todo mundo que já teve bicho já teve esta experiência. Porque cuidado é a melhor palavra para definir o que é ser uma mãe. Basta pensar na mulher que é mãe e não tem cuidado: todo mundo diz que ela não é mãe, porque ela não cuida... uma mãe que não cuida é uma desnaturada. E essas, infelizmente, também abundam na natureza. Cuidar é o sentimento que nos permite nos ultrapassar e pensar no outro primeiro, dedicar-lhe nossa energia, revolucionar completamente nossas vidas, nossos projetos, nossos sonhos pelo outro.

Mais que isso, se é que é possível: ser responsável por uma vida. O peso desta responsabilidade é imensurável. Eu não digo peso como fardo, mas como valor, uma dignidade, que somente a humildade da maternagem nos permite mensurar.

E também me proporcionou uma justiça histórica comigo mesma: sim, eu também sou mãe. O sentimento de cuidado, o olhar cuidadoso que desenvolvi para o mundo que me cerca é o que me proporciona sentir como uma mãe. Não somente mãe de meus bichos, mas uma mãe para o mundo. Eu me sinto uma mãe para o mundo por causa do meu cuidar. E ainda bem que, como eu (e, certamente, melhor do que eu), muitas outras pessoas também o são.

Este post é uma homenagem não apenas às mães biológicas, que têm sua comemoração assegurada (seja por motivos comerciais, não interessa, o fato é que são), mas em especial às pessoas que cuidam de quem e do que quer que precise de cuidado. Cuidado é do que mais nosso mundo precisa nestes tempos...