terça-feira, 13 de setembro de 2011

Bicho não é brinquedo



Mas as pessoas em geral não sabem disso. Frequentemente me espanto de ver o estranhamento na cara das pessoas quando eu digo que é preciso vacinar e vermifugar um animal, que ele precisa ser castrado. Elas acham que é só comprar - sim, esta ainda é a preferência nacional - e levar pra casa, dar uma ração (isso quando sabem que se tem de dar ração, muitos dão qualquer comida, até chocolate).

E quando eu digo que tem que dar água filtrada? O estranhamento beira a indignação! E explico, antes que a pessoa tenha um derrame, que o animal precisa desses cuidados básicos - e sim, eu friso "básicos" - para ele não ficar doente nem transmitir doença pros humanos responsáveis pela sua proteção.

Proteção é outra palavra que causa mal-estar. As pessoas acham que são donas dos bichos, mas não responsáveis por eles. Bem como na época dos escravos. Era só catar aquela gente do outro lado do mundo, botar num navio, recolher o que sobreviveu e vender. Se ficou doente na viagem, jogou no mar. Reclamou em terra, açoitou, torturou. Quebrou? Jogou fora. Ora, consertar mercadoria quebrada!

E explico, contornando a cara de interrogação da pessoa, que os animais são seres vivos que sentem fome, frio, medo e dor, que por isso somos por ele responsáveis, precisamos cuidar deles. E dá trabalho, quase como cuidar de criança novinha, especialmente se forem filhotes. Eles choram à noite, choram de fome, choram de frio, tremem de medo desamparados sem a mãe, têm dor de barriga se não a estimulamos, sujam a casa inteira, precisam de disciplina... e vivem entre 10 e 15 anos, alguns podem até chegar aos 19, como uma gatinha que conheci e morreu de câncer.

É vida de verdade, não é brinquedo.

Há gatos e gatos

-- Juliana, vem cá pra você ver a foto do meu gatinho!
Lá vou eu atender ao pedido que parecia tão inocente. Uma dessas fotos photoshópicas de um filhote branquinho, bem aveludado, em meio a um jardim.
-- Não é lindo meu gatinho?
-- Sim, que gracinha. É seu mesmo? Uai, nunca soube que você tinha animais, nunca me contou... ele é filhote, onde você o pegou? Ou você o comprou?
-- Eu o tenho há mais de dez anos...
E então interrompeu um riso engasgado e maléfico. Minha nuca se arrepia. Oh-oh, lá vem uma armadilha para a velha louca dos gatos.
-- ... ahn... mas nessa foto ele tá filhote, é antiga essa foto?
Claro que não, tolinha, para de querer ser simpática e sai correndo daí que a patrulha casamenteira está fechando o cerco!
-- Hahahaha Juliana, Juliana...
Eu sabia...
-- ... larga de ser boba, menina! Eu não tenho bicho nenhum lá em casa - não maltrato, mas não gosto de bicho em casa. Você tem é que parar de cuidar desses bichos e levar um gato de verdade pra sua casa...
Como se fossem alternativas mutuamente excludentes!
-- ...olha os olhos desse gato aqui, que lindos! É um gato desse que você tem que levar pra sua casa!
Rá rá rá. Nossa, que engraçado.O rapaz dos olhos verdes.
-- Olha... esse gato aí tem lindos olhos, mas é cheio de gatas pelas esquinas, tô fora!
E fui embora humilde, pensando, meu deus, agora além de velha louca dos gatos que distrai sua solidão cuidando de animais abandonados eu sou a solteirona amargurada que tenta suprir suas frustrações criando gatos em casa.

É só uma pequena noção do tanto de trabalho de conscientização sobre a importância da causa animal que eu preciso fazer diariamente...

A pobre louca dos gatos



-- Juliana, você não quer casar de novo?
Eu nem vi o que tinha me atingido: Como? Ah, bem, sim, por que não, né?
-- Você é sempre assim, feliz?
-- Ah... na maior parte do tempo acho que estou feliz sim -- e começo a me virar para a saída.
-- É que você está sempre sorrindo, você não se sente sozinha?
Como assim?!
-- Sim, eu me sinto sozinha, como qualquer outra pessoa, mas eu tenho muitas coisas para fazer, nem gasto muito tempo pensando nisso... -- e já estou quase de costas.
-- Os gatinhos dão muito trabalho, né não?
-- Sim, mas é um trabalho bom, eu me canso mas me divirto também.
-- Mas quando você tiver seus filhos, você vai ter que parar com esse trabalho né?
Pronto. Já me casaram de novo e já me arrumaram filhos. No plural. E me tiraram meus gatinhos. Isso é o mais cruel.
-- Não, não, não é preciso dar os animais quando se engravida, dá pra conciliar tudo, basta ter higiene, um mínimo de atenção com os cuidados básicos, vacinação, essas coisas...
-- Eu sei, eu sei. Mas você não vai ter tempo de cuidar de criança e de bicho ao mesmo tempo...
E agora eu sou uma idiota completa. Nunca desenvolvi polegares opositores.
-- Não, não é assim, ó... mas por que você tá me perguntando isso tudo?
-- Ah, porque eu te vejo todo dia, sorridente, mas fico pensando se você é sozinha, no seu apêzinho, com seus gatinhos.
A velha louca dos gatos.
-- Ah, não, não. Sabe... ok. Sim, talvez eu me case de novo se um homem aparecer para ser marido, e sim, eu quero ter filhos. Mas não sei se isso vai acontecer. Pode acontecer, mas eu não sofro pensando nisso todo dia, e pensar nisso nem é sofrimento. E a gente é um monte de coisa, não só uma coisa só. Quem casar comigo vai levar o pacote completo, é porteira fechada.
-- É, é bom pra distrair, né?
Coitada.
-- É, é. É bom sim... distrair... bem, até amanhã!
Apressei o passo o quanto pude pra me livrar da sabatina da casamenteira.

Mas o pior não é a indelicadeza de alguém me fazer perguntas tão pessoais assim, do nada. O pior é alguém pensar que eu, enquanto protetora de animais vítimas de maus tratos, faz isso por simples distração.

Chorando a morte do bezerro

Todo ano é a mesma coisa. Mesma coisa? Acho que não, desde as últimas edições da Festa do Peão em Barretos, SP. Com a maior organização dos grupos de proteção animal, suas ações têm ficado cada vez mais profissionais. Este ano, lamentavelmente, houve a necessidade de sacrificar um bezerro que teve sua coluna lesionada durante a prova de uma "modalidade desportiva" chamada bulldog. Ele ficara paraplégico em decorrência desta lesão. Veja a notícia aqui: http://noticias.uol.com.br/cotidiano/2011/08/25/morte-de-bezerro-reacende-polemica-sobre-animais-no-rodeio-de-barretos.jhtm


Se você não sabe que prova é essa, explico: um peão (normalmente um homem bem robusto), sobre um cavalo, pula de sua montaria sobre um bezerro que é solto em uma arena. Imagine o desespero do animal fugindo de um homem lhe persegue implacavelmente até derrubá-lo. O risco está implícito, inclusive para o peão também. Mas nem o sofrimento do jovem animal,  nem o risco de morte e lesões de ambos os animais conseguem em momento algum fazer as pessoas pararem e repensarem os valores de uma cultura que não consegue correr o tempo e se reiventar.

Vou fazer uma analogia com a tourada, outra "modalidade desportiva" que tem o mesmo objetivo que os das festas de peão. Eu até entendo o que está por trás de uma tourada - obviamente não a apoio em nenhuma hipótese, mas compreendo que ela simboliza a luta do homem, supostamente racional, contra o animal, que representa seu lado instintivo. O curioso é o touro, o animal, o instinto, o baixo, o irracional, o ilógico já ter de vir para a briga prejudicado (sangram-no com algumas facadas antes de soltá-lo na arena), como que para garantir que o semi-corajoso toureiro o vença por fim. Na vida real, enfrentamos nosso lado além-razão de peito aberto, sem sedém, sem cortes, sem laço. Para encarar nosso lado mais primal, melhor seria bailar com ele num tango.

É difícil ter de fazer o exercício de ouvir o discurso antagônico, mas é preciso tentá-lo, porque quando controlo minha revolta e faço o exercício de buscar a lógica no discurso alheio, consigo perceber que ele só se constroi com justificativas falhas, que procuram manter na atualidade o pensamento e o comportamento saudosista de um mundo que não existe mais. A maioria dos produtores não produz sem mecanização; o trabalho animal já está superado na maior parte do mundo rural. O homem rural já é um bravo por si só, por enfrentar os elementos e sua imprevisibilidade, as deficiências das políticas agrárias, as injustiças sociais no campo, entre outros problemas. Sua festa de peão deveria mostrar, como troféu, não um animal morto, sacrificado por uma profunda estupidez, mas o fruto do seu labor de sol a sol.

Por uma festa de interior mais digna.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Um crime que esconde muitos outros

Um crime que acabou levando a outro. Dois jovens que supostamente iriam "sacrificar" uma cadela que estaria doente com uma arma calibre 22 acabaram discordando na hora da "execução" e um dos jovens acabou disparando contra o outro.

http://g1.globo.com/espirito-santo/noticia/2011/09/adolescente-de-15-anos-mata-menino-de-13-com-tiro-no-peito-no-es.html


É a síntese (infeliz) do que venho tentado demonstrar aqui no blog: a cultura de violência que está por trás de como tratamos os animais, que expressa nada mais, nada menos, do que nós próprios somos - ou temos sido.

Em primeiro lugar, destaque para o fato de que dois jovens tiveram acesso a uma arma de fogo, algo que jamais poderia estar disponível facilmente para ninguém, que dizer para dois garotos mal entrados na adolescência. Fruto da cultura de violência banalizada.

Em segundo lugar, o "sacrifício" do cão. Daí é possível ler este comportamento em várias camadas: uma, que o animal doente não mereceu a devida atenção da família por ele responsável. Que doença ele tinha? Era tratável? Por que não se tratou o animal? Se não havia tratamento, porque não eutanasiá-lo de maneira digna? A primeira resposta que me vem à mente para estas perguntas é que o animal não é considerado ser vivo, mas um objeto -- por isso que as pessoas dizem que são "donas" de seus bichos. A segunda resposta pode até ser que estas pessoas não tinham condoções financeiras para tratar o animal (muitas vezes essas pessoas não têm dinheiro nem pra custear seus próprios tratamentos de saúde) - e aí eu entro na outra camada de leitura possível deste lamentável fato: a falta de uma estrutura eficiente que cuide dos animais. Um centro de controle de zoonoses que possa se prestar a dar atendimento veterinário gratuito a pessoas carentes que sejam tutoras de seus animais. E por que não há uma estrutura como esta? Vamos descer à outra camada de leitura: a de que falta política pública focada na questão da responsabilidade sobre os animais.

Infelizmente, ainda na atualidade, quando se fala em meio ambiente, só se pensa em flora e fauna selvagens e exóticos. Pensa-se em Amazônia, em ararinha-azul. Mas não se pensa que meio ambiente é onde está nossa casa, a rua por onde andamos todos os dias, os pombos que comem do nosso lixo, os gatos de bueiro que caçam os ratos, os cães soltos na rua que se contaminam com leishmaniose. Tudo isso é também meio ambiente. É a fauna urbana, da qual os animais urbanos, inclusive os de rua, precisam ser vistos como parte integrante.