terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Espelho, espelho meu...

... que tipo de animal sou eu?



Eu demorei muito para postar sobre este assunto, em especial, por conta da ampla divulgação na mídia. Não que eu já não soubesse que crimes assim aconteciam, e numa frequência muito, mas muito maior do que as pessoas em geral sabem. Não que na ong a gente já não tivesse recebido e-mails com denúncias de chocantes crimes de maus tratos como este. Não que a gente já não tivesse acolhido animais que foram apedrejados, atropelados, queimados, espancados, mutilados.

Mas é que igualmente me assustou o tipo de reação que as pessoas tiveram contra a criminosa em questão, elas mesmas incitando a outros crimes, elas mesmas cometendo crimes de injúria, de difamação, de ameaça de morte e outros mais. Os comentários abaixo dos artigos em jornais online sobre o horrendo fato deram espaço a um transe coletivo de anti-heróis justiceiros, e me assustaram. O bicho-homem estava todo ali.

Ficou ainda mais claro para mim, e não sei se as pessoas puderam perceber isso também, o paradoxo que é a bestialidade no humano, que não tem correspondência num animal. Os animais apenas caçam para satisfazer suas necessidades básicas; ao atacar, não têm sentimento de ódio nenhum, sentem apenas uma fome imensa, um rush de adrenalina que prepara seu corpo para a efetiva captura de seu alimento. Instinto de sobrevivência e nenhuma consciência sobre si, sobre "a vida, o universo e tudo o mais". Usam de armas desenvolvidas por milhões e milhões de anos de evolução (desculpem-me os criacionistas, mas aqui sintam-se à vontade para substituir para "desenvolvidas por Deus", e o resultado do raciocínio permanecerá o mesmo) para infligir medo, paralisia em sua presa. A eficácia do ato, mas sem ódio. Na máscara boquiaberta de pontiagudos dentes expostos não há maldade. Há o teatro da vida, a ingestão de proteína, a transformação em energia. Não há requintes de crueldade calculados: há a garra no golpe certeiro, a presa no ponto mortal. Fome. Alimento. Energia. Vida. Fome. Alimento...

Não há opção. Não há liberdade. Há a dor da fome, a fraqueza dos membros, o vagar na selva.

Porém, naqueles minutos -- que mais pareciam horas -- em que a mulher que tomara como profissão o cuidado com a vida escolheu cada golpe que ia aplicar naquele cão, e diante de sua pequena filha, que a tudo apreendia, ainda sem entender, havia ódio, raiva, crueldade calculada. Ela era lenta. Ela desferia os golpes e observava a reação da vítima. Ela poderia ter parado -- ela poderia nunca ter começado aquela sessão de tortura! Mas ao menos ela poderia ter parado, logo depois do primeiro golpe, e pensado: "Gente, o que eu estou fazendo? O que eu fiz?" Ela poderia ter se arrependido do que fizera. Poderia ter voltado o pensamento para si e perguntado, enfim, "quem sou eu? essa sou eu?"

Assustar-se e horrorizar-se com sua capacidade de causar tanta dor, tanto estrago, tanto sofrimento. Esta incapacidade de se olhar no espelho e ver o reflexo do monstro que se projeta de nós, a Besta, está faltando. Está faltando nos políticos corruptos, que têm plena consciência de que estão matando em massa quando desviam dinheiro da saúde pública para compra de votos para projetos de enriquecimento pessoal. Está faltando nas pessoas que bebem álcool e depois assumem a direção de um carro, conduzindo um veículo quando não conseguem conduzir seu próprio corpo por alguns passos. Está faltando nas pessoas que vendem seus votos por cargos públicos. Está faltando nas pessoas que jogam lixo e bituca de cigarro no chão, quando a lata de lixo está a poucos passos, ou quando não custa nada esperar para jogar o lixo no lugar certo quando longe de uma lixeira. Está faltando que elas percebam que parte do alagamento nas cidades é culpa delas também.

"The horror... the horror..."

Ela se disse arrependida quando se apresentou ao delegado. Ela se assustou com a repercussão do caso e as ameaças de morte, só isso. Até que ela tenha olhado para o monstro que vive nela, nenhuma possibilidade de ela vir a se tornar, de fato, humana...
  

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