Uma amiga do trabalho
chegou um dia dizendo que havia visto uma gatinha recém-parida
debaixo da carcaça de um carro abandonado na quadra em que mora. Ela
é tutora de uma cachorrinha idosa em casa, já quase completamente
cega e surda, de quem cuida com muito carinho e atenção, e que
provavelmente não suportaria lidar com a novidade de uma gata com
uma ninhada inteira; uma gata que, por isso mesmo, já estaria com os
nervos à flor da pele, protetora, atenta aos perigos, mais arisca do
que nunca. Buscou ajuda.
Então começou sua
descida aos infernos. (Não foi dito que o inferno são os outros?
Talvez.)
Ela ficou assombrada
por ninguém mais ter dado atenção ao fato, oferecido proteção à
gata e seus filhotes. Uma quadra inteira, quase dez blocos, seis
andares cada um, vários apartamentos por andar, muitas famílias e
seus filhos. E ninguém.
Ela buscou com sua
família, com amigos, que tentassem ajudá-la a acolher a gata e sua
ninhada. (Eu disse que se ela conseguisse um lar temporário, seria
possível conseguir descontos em clínicas veterinárias, tratamento,
castração e o futuro encaminhamento à adoção). Não conseguiu.
Incompreensão. Estranhamento. Sentimento de solidão. Espanto. O
inesperado.
Ela entrou em contato
com abrigos de animais. (Eles estão lotados, não teriam como
abrigar mais esta família; eles mesmos precisam de ajuda). Não
conseguiu. Raiva. Revolta. Sentimento de solidão.
Trouxe um pouco de
ração dos meus gatos para ela colocar perto da gatinha, ela iria
precisar, recém-parida, com dificuldade de buscar alimento. Ela
colocou. E, no dia seguinte, haviam retirado as tigelas de comida que
ela havia colocado. Choque. Dor. Choro.
A mãe gata foi embora.
Veio a chuva monstro da
madrugada, a primeira de Brasília, depois da seca. Tão esperada
pelos brasilienses e, por ela, tão temida – e os filhotes?
Dois já mortos, num
canto. Um, muito fraco; outro poderia ter sido o mais forte,
debatia-se. Buscava a mãe, o leite, o calor, a proteção. Onde?
Apenas três ou quatro dias de nascido...
Ela desceu à rua à
meia-noite; ela, e ninguém mais; o filhote mais fraco, já morto,
afogado; retirou o último filhote ainda vivo, e o levou pra casa, e
o embrulhou em uma toalhinha, e enfrentou o pai, e o velou à noite,
e esperou que continuasse a viver.
Ao menos ele pôde
morrer nas mãos da compaixão.
Ela chorou muito por
três dias. Comprou um saco de ração para deixar no carro, para
quando precisar ajudar algum bichinho. Ela nunca mais foi a mesma.
Ela viu o mundo.
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